Tenho um irmão siamês. Partilhamos tudo, sempre partilhámos tudo, mas cada um tem o seu próprio pescoço e, consequentemente, a sua própria cabeça. Tudo o mais partilhamos. Formamos um corpo normal com duas pernas, dois braços, um órgão genital, um coração. Existe apenas uma ligeira bifurcação do tronco à altura do peito. Inclusive, cada um tem o seu próprio nome, mas como nunca ninguém nos trata por ele é desnecessário referir quais são. Para a grande totalidade dos nossos familiares, amigos e conhecidos somos apenas o da Direita e o da Esquerda. O primeiro sou eu. Já os desconhecidos, à primeira abordagem, têm algum pudor em nos tratar individualmente, quero dizer, no singular. É frequente perguntarem-nos, "Prefere que o trate por tu ou por vocês?" Por mim é indiferente. Penso que quaisquer destas formas de tratamento se adequam à nossa condição bicéfala. Já o meu irmão faz imensa questão. Como o conheço muito bem não o levo a mal. Mas, em verdade, ele tem uma natureza muito peculiar: Exemplo: ele toma a realidade pelo lado de dentro. Para ele sonho e realidade obedecem às mesmas ordens, pertencem à mesma dimensão, são feitas da mesma matéria. Não estabelece qualquer distinção entre uma coisa e outra. Já eu concebo o sonho como um universo distante e inútil. Para mim só há realidade no lado de fora. O que me preocupa e ocupa a vista são apenas as coisas reais, nada mais. Talvez seja por isso que ele anda sempre com um olhar sonhador, as pupilas cintilantes, olhando, distraidamente, coisas que não existem. Por essa razão, amiúde, sucedem percalços. Sucede imensas vezes, por exemplo, durante as refeições, ele levar o seu braço, com o garfo e comida na ponta, à minha boca por engano. Eu não me importo - realmente, pouca coisa me importa - excepto se estivermos na companhia de senhoras. Não deixa de ser uma situação confrangedora, mas eu compadeço-me com ele. Aliás, tudo nele me enternece. O seu conceito de beleza é para mim uma raridade. O que lhe anima o espírito de tão belo, diz ele, a mim faz-me os olhos fugir para dentro, em pânico. Para mim beleza é só beleza. Para ele beleza é também fealdade. A propósito do Mundo costuma dizer, "O Mundo é sonho e invenção. O próprio sonho é inventado." Não o entendo e ele também não se esforça por se fazer entender. Momentos há que me esqueço que tenho um irmão logo ali no outro lado do ombro, tal é a solidão em que ele se encerra. Acredito, suponho que acredito, que estes estados de alma são apenas consequência do abuso do álcool. Em outros momentos ele é abundantemente eloquente nas suas ideias e é capaz de pasmar qualquer um. Eu muito aprecio esta sua particularidade. Apenas lamento que esta sua faceta não seja frequente. É meu irmão, não o renego, mas, por vezes, sinto por ele inveja e ciúme. Inveja pela sua generosidade, pela acuidade e destreza do seu pensamento, e da sua beleza física, entenda-se facial; Ciúme porque as mulheres olham bem mais para ele do que para mim. Tenho por vezes vontade, juro por tudo que tenho, de nos atirar de um penhasco abaixo só para não ter de o suportar. Tenho sincera vontade de lhe cortar a cabeça pela parte do pescoço e fazê-la rolar encosta abaixo só para ficar vê-la rolar e ter a absoluta consciência de que ele vai dentro dela. Mas só penso isto da boca para dentro. A verdade é que tenho um irmão siamês que muito prezo e estimo, e louvo a Natureza por isso.