Sábado, 26 de Setembro de 2009

Tenho um irmão siamês. Partilhamos tudo, sempre partilhámos tudo, mas cada um tem o seu próprio pescoço e, consequentemente, a sua própria cabeça. Tudo o mais partilhamos. Formamos um corpo normal com duas pernas, dois braços, um órgão genital, um coração. Existe apenas uma ligeira bifurcação do tronco à altura do peito. Inclusive, cada um tem o seu próprio nome, mas como nunca ninguém nos trata por ele é desnecessário referir quais são. Para a grande totalidade dos nossos familiares, amigos e conhecidos somos apenas o da Direita e o da Esquerda. O primeiro sou eu. Já os desconhecidos, à primeira abordagem, têm algum pudor em nos tratar individualmente, quero dizer, no singular. É frequente perguntarem-nos, "Prefere que o trate por tu ou por vocês?" Por mim é indiferente. Penso que quaisquer destas formas de tratamento se adequam à nossa condição bicéfala. Já o meu irmão faz imensa questão. Como o conheço muito bem não o levo a mal. Mas, em verdade, ele tem uma natureza muito peculiar: Exemplo: ele toma a realidade pelo lado de dentro. Para ele sonho e realidade obedecem às mesmas ordens, pertencem à mesma dimensão, são feitas da mesma matéria. Não estabelece qualquer distinção entre uma coisa e outra. Já eu concebo o sonho como um universo distante e inútil. Para mim só há realidade no lado de fora. O que me preocupa e ocupa a vista são apenas as coisas reais, nada mais. Talvez seja por isso que ele anda sempre com um olhar sonhador, as pupilas cintilantes, olhando, distraidamente, coisas que não existem. Por essa razão, amiúde, sucedem percalços. Sucede imensas vezes, por exemplo, durante as refeições, ele levar o seu braço, com o garfo e comida na ponta, à minha boca por engano. Eu não me importo - realmente, pouca coisa me importa - excepto se estivermos na companhia de senhoras. Não deixa de ser uma situação confrangedora, mas eu compadeço-me com ele. Aliás, tudo nele me enternece. O seu conceito de beleza é para mim uma raridade. O que lhe anima o espírito de tão belo, diz ele, a mim faz-me os olhos fugir para dentro, em pânico. Para mim beleza é só beleza. Para ele beleza é também fealdade. A propósito do Mundo costuma dizer, "O Mundo é sonho e invenção. O próprio sonho é inventado." Não o entendo e ele também não se esforça por se fazer entender. Momentos há que me esqueço que tenho um irmão logo ali no outro lado do ombro, tal é a solidão em que ele se encerra. Acredito, suponho que acredito, que estes estados de alma são apenas consequência do abuso do álcool. Em outros momentos ele é abundantemente eloquente nas suas ideias e é capaz de pasmar qualquer um. Eu muito aprecio esta sua particularidade. Apenas lamento que esta sua faceta não seja frequente. É meu irmão, não o renego, mas, por vezes, sinto por ele inveja e ciúme. Inveja pela sua generosidade, pela acuidade e destreza do seu pensamento, e da sua beleza física, entenda-se facial; Ciúme porque as mulheres olham bem mais para ele do que para mim. Tenho por vezes vontade, juro por tudo que tenho, de nos atirar de um penhasco abaixo só para não ter de o suportar. Tenho sincera vontade de lhe cortar a cabeça pela parte do pescoço e fazê-la rolar encosta abaixo só para ficar vê-la rolar e ter a absoluta consciência de que ele vai dentro dela. Mas só penso isto da boca para dentro. A verdade é que tenho um irmão siamês que muito prezo e estimo, e louvo a Natureza por isso.



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 16:34
Sábado, 19 de Setembro de 2009

Uma vez que a manhã estava deliciosamente agradável, luminosamente branca, belissimamente pálida, decidi visitar o Sr.. Ernesto a sua casa. Éramos muito amigos, ele era muito velho, muito magro, eu sou terrivelmente feio. O Sr.. Ernesto vivia num pardieiro sombrio, num lúgubre prédio de fachada antiga. Como não existia elevador e a sua casa se encontrava num 4ºandar, eu subia as escadas sempre com muita dificuldade mas descia sempre ao pé coxinho. Bati na porta com o punho cerrado produzindo a tal musiquinha com que ele me reconhecia. Mas nada, nem sinal do Sr.. Ernesto. Bati muitas outras vezes até que decidi utilizar a chave que ele me havia oferecido. Já dentro da sua casa gritei, "Sr. Ernesto! Sr. Ernesto! Sou eu, X! Não se recorda de mim? Uso bigode e bengala, ambos por diversão!" Mas não havia meio de retirar o Sr.. Ernesto da toca em que se havia enclausurado. As baratas subiam-me pelas pernas acima e o fedor recordava-me um velório. Depois de vasculhar toda a casa, entrei no seu quarto. Ao lado da cama encontrei um corpo retorcido: Era o Sr.. Ernesto! Virei-o para mim puxando-o por um braço. Tinha espuma saindo-lhe da boca, os olhos fixos em agonia, as mãos encarquilhadas. Na mesa-de-cabeceira descansava um frasco de cianeto destampado, e debaixo deste, uma folha de papel esvoaçava tocada pelo vento da janela aberta. Peguei na folha sem tocar no frasco de cianeto, puxando-a rapidamente para mim. Era uma carta. Li-a:

«A quem me encontrar, ou melhor, ao Sr.. X, meu amigo, pois bem sei que será o senhor quem me encontrará,

Como decerto já reparou, estou morto. Se não reparou trate de reparar, se não estou morto trate de me matar. Estará neste momento, com toda a certeza, questionando-se porque raio cometi eu este acto de loucura, digo loucura porque decerto o senhor está pensando que esta é a melhor designação para o meu acto. Entanto, em meu entender, se é que com esta idade eu já entendo coisa alguma, este meu acto nada tem de loucura. Não se questione mais. Este foi um acto de amor, meu querido amigo X. Passo a explicar: Como porventura já o senhor tinha reparado - entanto duvido que o tenha pois o senhor é muito distraído, o que até lhe acrescenta um ar engraçado, devo confessar - eu não vivia, existia apenas. E a diferença entre estes dois processos é tremenda meu amigo, tremenda! A diferença entre viver e existir é que o primeiro é deveras um processo, enquanto o segundo não passa de um mero estado, um estado desolador. Como pode alguém viver viver sem amor, sem aquele sentimento que nos preenche a alma e que através dele, e apenas através dele, saciamos o corpo? Não é que não tenha encontrado o amor, encontrei-o. Ah!, se encontrei! Mas esse amor não me pertencia, primeiro porque esse amor já teria encontrado um outro, e segundo porque nunca me poderia pertencer. E sendo este o caso de nada adianta procurar razões para isso ser assim , pois no amor nunca há razões para nada. Portanto, eu amava quem não poderia amar e por isso eu só poderia amar dissimuladamente. Pois foi isto que me sucedeu, meu  querido X. Tudo isto é muito simples. Se o amor é, como toda a gente sabe, a corda com que Deus nos levita a alma, e não sendo possível eu amar e ser amado, então meu querido X, permita-me que o trate só por meu querido, pareço condenado a ser companheiro de Lúcifer pelos confins da eternidade afora. Portanto, meu amor, meu querido X, se o senhor também me ama, junte-se a mim. Pegue nesse frasco e amemo-nos, juntos de Deus, porquanto as almas celestiais não possuem género. Se também me ama, venha, eu por cá o espero. Deixo-lhe um beijo meu querido X.

Ernesto»

Fiquei muito tonto e por isso fiz da carta uma bola amassada e deixei-a junto do fétido corpo do Sr.. Ernesto. Saí daquela casa o mais rapidamente que consegui. Bati a porta estrondosamente e desci as escadas ao pé coxinho. Já na rua, encostei-me na parede do lúgubre prédio recuperando o fôlego. Pensei de mim para mim, "Eu também amo, amei o Sr.. Ernesto. Contudo de nada me adiantaria beber do seu frasco de cianeto, a minha ética ateia não mo permite, de modo algum. Que a sua alma descanse em paz." Posto isto, encaminhei o guarda mais próximo até à casa do Sr.. Ernesto e prossegui a minha vida sem mais delongas.



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 17:30
Sábado, 12 de Setembro de 2009

Bati três vezes à porta da velha casa mas ninguém me respondeu. Gritei, "Ó da casa!", nada, "Está alguém?", nada. Tornei a bater como se não tivesse obtido resposta alguma, além do ricochete da minha voz trémula. Tinha escolhido aquela casa porque era a única das redondezas cuja chaminé fumegava, ouvia barulho dentro da casa, televisão a palrar, crianças a brincar, pessoas a discutir, mas ninguém me ouviu bater, e eu que só queria uma sopa quente porque sentia muito frio. Frenético, enrolei-me no grosso casaco imundo e esperei que a porta enfim se abrisse mas isso não aconteceu, mas mesmo assim eu esperei. Pensava já em desistir quando por fim a porta chiou e um homem grande surgiu por detrás dela. Disse-me com maus modos, "O quê!? Ainda aqui estás? Faz três dias que bates à minha porta quando te disse já variadíssimas vezes que não tenho sopa quente. Nem fria tampouco, quanto mais quente. Vai-te embora, já te disse." e eu respondi-lhe, Não o quero incomodar. Só lhe peço ajuda, não precisa de me dar sopa. Dê-me uma tigelinha de ajuda, por favor. Não o quero incomodar." A porta fechou-se com estrondo. A minha alma abanou. Esperei mais alguns anos à porta da velha casa, a chaminé sempre a fumegar, mas ninguém entrava ou saía. Um dia a porta abriu-se, sem eu ter batido sequer, o homem grande surgiu por detrás dela e estava agora grisalho e encarquilhado. Ordenou-me que entrasse. Aquiesci, sentia muito frio. Disse-me estas palavras, "Estou muito velho, muito cansado. Como imaginas, já não tenho condições para cuidar desta família. Senta-te. Esta agora é a tua poltrona. Esta a tua mulher, estas as tuas crianças. Agora, esta é a tua família. Mas lembra-te: Nunca dês sopa a ninguém. Quando te sentires velho e cansado chamas o homem que estiver de pé na soleira da porta. Ele cuidará bem da tua casa, podes estar seguro. Adeus." O homem saiu da velha casa. Eu permaneci sentado na minha poltrona.

Nunca mais senti frio.



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 16:36
Sábado, 05 de Setembro de 2009

O pequeno grupo avançou corredor afora. À medida que avançavam, o corredor estreitava mais e mais, as paredes nuas tornavam-se cada vez mais frias. Durante o percurso, que não terminava nunca, não se proferiu uma única palavra, apenas sinistros entreolhares entre o militar, a mulher balofa e o homem de trás, que se manteve sempre atrás do grupo. O corredor estreitou tanto que o acesso à sala só se podia fazer com uma pessoa de cada vez, e enfiando o corpo lateralmente. E assim entraram na sala, uns a seguir aos outros. A sala estava quase completamente vazia, as paredes brancas. Uma redoma de vidro vazia, com o suficiente tamanho de albergar uma pessoa humana, encontrava-se no centro da sala. Um papel enrolado jazia no chão à frente do grupo. Todos olharam o visitante que empurrou o papel para um dos cantos da sala com um pontapé convicto. Após isto, apenas silêncio. Por fim, o visitante atirou, "Porque raio me trouxeram para esta sala vazia?" E o militar, "Esta sala tem estado fechada há muito, na verdade nunca abriu, por isso que aguardávamos a sua visita com tamanha impaciência. Esta sala é referente ao povo do país Longinquo, do seu país Longinquo." E o visitante inquieto, "Não compreendo..." Nesse momento, o homem de trás bateu uma palma. O militar agarrou num dos braços do visitante, a mulher balofa no outro, e enquanto o encaminhavam, sem qualquer resistência, para a redoma de vidro, o militar concluiu, "Ser-lhe-á concedida a imortalidade,  meu caro. Você é um notável espécimen do seu povo longínquo. Aqui todos os visitantes o poderão ver, apreciar, estudar. Agora sim, já poderemos abrir a sala." E já com o visitante resignado no seu interior, o homem de trás fechou a redoma de vidro.

 

Fim



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 16:59
Da infância, da vida e da morte.
mais sobre mim
Setembro 2009
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5

6
7
8
9
10
11

13
14
15
16
17
18

20
21
22
23
24
25

27
28
29
30


pesquisar neste blog
 
subscrever feeds
blogs SAPO