Nasci há muito tempo, lembro-me bem. Seguraram-me pelos pés de cabeça para baixo, deram-me uma palmada no rabo para que eu pudesse chorar, mas eu não chorei porque não me havia ocorrido tragédia alguma, excepto o eu ter nascido, claro está. Mas nem isso foi tragédia pois não sabia sequer o que a palavra tragédia queria dizer. Embrulharam-me em lençóis muito quentinhos e atarraxaram-me uma chupeta na boca, e estando eu tão feliz era impossível não adormecer, como realmente aconteceu. Acordei em minha casa rodeado de parentes, e a determinado momento descobri que conseguia andar, embora voar me fosse impossível o que me deixou muito desanimado com a vida. Sentei-me na cadeira de baloiço do meu avô, fi-lo como quem se senta no transiberiano, guloso por uma grande aventura. Dormi. Sonhei com muitas coisas bonitas e passados muitos anos acordei e vi que afinal a vida não tinha só coisas bonitas e fiquei muito aflito, embora eu não soubesse o que era aflição. Resolvi então voltar a dormir mas os olhos não se me queriam fechar e tive de convencer as pálpebras com muita persistência até que acabei por o conseguir. Voltei a sonhar muito, muito, com muitas coisas ao mesmo tempo, e decorridos alguns séculos despertei e a casa onde me encontrava já não era a mesma, embora a cadeira de baloiço fosse ainda a do meu avô. Olhei-me no espelho e descobri que estava tal qual ele, mas que ele já havia morrido assim como toda a minha família. Foi então que me lembrei da palmada da parteira e chorei muito até que fiquei alagado em tristeza.
Hoje sei que estou muito velho, mas ainda não sei o que são tragédia, aflição nem tristeza, e é por isso que escrevo pois quero, antes de morrer, conhecer todas as emoções escondidas dentro de mim.