Sábado, 19 de Setembro de 2009

Uma vez que a manhã estava deliciosamente agradável, luminosamente branca, belissimamente pálida, decidi visitar o Sr.. Ernesto a sua casa. Éramos muito amigos, ele era muito velho, muito magro, eu sou terrivelmente feio. O Sr.. Ernesto vivia num pardieiro sombrio, num lúgubre prédio de fachada antiga. Como não existia elevador e a sua casa se encontrava num 4ºandar, eu subia as escadas sempre com muita dificuldade mas descia sempre ao pé coxinho. Bati na porta com o punho cerrado produzindo a tal musiquinha com que ele me reconhecia. Mas nada, nem sinal do Sr.. Ernesto. Bati muitas outras vezes até que decidi utilizar a chave que ele me havia oferecido. Já dentro da sua casa gritei, "Sr. Ernesto! Sr. Ernesto! Sou eu, X! Não se recorda de mim? Uso bigode e bengala, ambos por diversão!" Mas não havia meio de retirar o Sr.. Ernesto da toca em que se havia enclausurado. As baratas subiam-me pelas pernas acima e o fedor recordava-me um velório. Depois de vasculhar toda a casa, entrei no seu quarto. Ao lado da cama encontrei um corpo retorcido: Era o Sr.. Ernesto! Virei-o para mim puxando-o por um braço. Tinha espuma saindo-lhe da boca, os olhos fixos em agonia, as mãos encarquilhadas. Na mesa-de-cabeceira descansava um frasco de cianeto destampado, e debaixo deste, uma folha de papel esvoaçava tocada pelo vento da janela aberta. Peguei na folha sem tocar no frasco de cianeto, puxando-a rapidamente para mim. Era uma carta. Li-a:

«A quem me encontrar, ou melhor, ao Sr.. X, meu amigo, pois bem sei que será o senhor quem me encontrará,

Como decerto já reparou, estou morto. Se não reparou trate de reparar, se não estou morto trate de me matar. Estará neste momento, com toda a certeza, questionando-se porque raio cometi eu este acto de loucura, digo loucura porque decerto o senhor está pensando que esta é a melhor designação para o meu acto. Entanto, em meu entender, se é que com esta idade eu já entendo coisa alguma, este meu acto nada tem de loucura. Não se questione mais. Este foi um acto de amor, meu querido amigo X. Passo a explicar: Como porventura já o senhor tinha reparado - entanto duvido que o tenha pois o senhor é muito distraído, o que até lhe acrescenta um ar engraçado, devo confessar - eu não vivia, existia apenas. E a diferença entre estes dois processos é tremenda meu amigo, tremenda! A diferença entre viver e existir é que o primeiro é deveras um processo, enquanto o segundo não passa de um mero estado, um estado desolador. Como pode alguém viver viver sem amor, sem aquele sentimento que nos preenche a alma e que através dele, e apenas através dele, saciamos o corpo? Não é que não tenha encontrado o amor, encontrei-o. Ah!, se encontrei! Mas esse amor não me pertencia, primeiro porque esse amor já teria encontrado um outro, e segundo porque nunca me poderia pertencer. E sendo este o caso de nada adianta procurar razões para isso ser assim , pois no amor nunca há razões para nada. Portanto, eu amava quem não poderia amar e por isso eu só poderia amar dissimuladamente. Pois foi isto que me sucedeu, meu  querido X. Tudo isto é muito simples. Se o amor é, como toda a gente sabe, a corda com que Deus nos levita a alma, e não sendo possível eu amar e ser amado, então meu querido X, permita-me que o trate só por meu querido, pareço condenado a ser companheiro de Lúcifer pelos confins da eternidade afora. Portanto, meu amor, meu querido X, se o senhor também me ama, junte-se a mim. Pegue nesse frasco e amemo-nos, juntos de Deus, porquanto as almas celestiais não possuem género. Se também me ama, venha, eu por cá o espero. Deixo-lhe um beijo meu querido X.

Ernesto»

Fiquei muito tonto e por isso fiz da carta uma bola amassada e deixei-a junto do fétido corpo do Sr.. Ernesto. Saí daquela casa o mais rapidamente que consegui. Bati a porta estrondosamente e desci as escadas ao pé coxinho. Já na rua, encostei-me na parede do lúgubre prédio recuperando o fôlego. Pensei de mim para mim, "Eu também amo, amei o Sr.. Ernesto. Contudo de nada me adiantaria beber do seu frasco de cianeto, a minha ética ateia não mo permite, de modo algum. Que a sua alma descanse em paz." Posto isto, encaminhei o guarda mais próximo até à casa do Sr.. Ernesto e prossegui a minha vida sem mais delongas.



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 17:30
Amigo Mário! E sem mais delongas da minha parte, outro conto delicioso. Venham mais. Abraço.
manu a 20 de Setembro de 2009 às 11:31

Muito obrigado, amigo Manu. Faz-se o que se pode. Alerto-o de que daqui para diante se tornarão mais sombrios. Um abraço.

Da infância, da vida e da morte.
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