Tenho tido durante toda a minha vida um único sonho sonhado. Todos os dias, todas as noites, o mesmo arrepio na espinal-medula, o mesmo trovejar no corpo e na alma, principalmente na minha cabeça, no meu cérebro, bem dentro dele. E sonho o seguinte sonho sonhado:
Estou numa sala mal iluminada pendurado pela pele do cachaço num cabide da parede. Tenho os braços esticados horizontalmente presos por duas fortes correias de cabedal. São fortes porque eu nunca me tento libertar delas. Os pés estão livremente suspensos sobre o chão frio, um ao lado do outro. À minha frente está uma secretária com um papel que é escrevinhado pelo homem que lá está sentado. Ele escrevinha mas não tem nada nas mãos, apenas aperta o polegar contra o indicador e faz uns movimentos circulares enquanto me fita hipnoticamente. De pé do seu lado direito, está outro homem. O rosto é cadavérico e aterrador, traz o tronco despido de onde saltitam músculos ao mais leve movimento. Segura numa das mãos um longo chicote que frequentemente o faz estalar no chão. Cheio de medo, pergunto-lhes, "Quando me posso ir embora?" mas não obtenho resposta alguma. Um escrevinha coisas invisíveis, o outro estala o chicote. Insisto, "Quando me posso ir embora?" O que está de pé, sempre fito nos meus olhos e mostrando-se surpreendido responde, "Porque te queres ir embora?", "Porque ninguém gosta de ser chicoteado." digo. E o homem, "Quem é esse ninguém? Estás ao serviço de quem?", "Pelo amor de Deus, não me faça mal, não conheço pessoa alguma neste país. E o senhor, porque faz estalar assim esse chicote? Já disse que não conheço ninguém.", "Mau, mau... Assim não nos entendemos...", "Sim, eu também só quero entender. Por favor, deixem-me ir embora!", "Já disse para te calares!", "Quando?", "Cala-te!" O chicote volta a estalar mais uma e outra vez, e outra, mas agora no meu peito, abrem-se-me fendas, pedaços de carne caem-me no chão. O que está sentado mostra a palma da mão ao do chicote. Este torna a estalar no chão. O primeiro pega no papel com uma mão em cima e outra em baixo e estende os braços na minha direcção. Pede-me que leia o papel. Eu, por muito que me esforce, e esforço, nada vejo lá escrito. E de novo o chicote no meu corpo dormente, mais fendas, mais carne pútrida a conspurcar o chão. "E agora, diz-me o que vês.", "Esta penumbra é muito limitadora, no entanto os meus olhos já se lhe habituaram. A folha que o senhor segura tem escrita:«SENTENÇA:» Apenas isto. E agora, já me posso ir embora? Tenho o peito repleto de fendas.", "Ainda não. Ainda te falta ler o resto da folha.", "Mas não há resto na folha.", "Isso é porque ainda não estás preparado." E novamente o chicote, carne pútrida no chão, também pele e sangue. A dor foge-me sempre pela garganta e pela boca. Volta-me a ser mostrado o papel. Agora leio: "Condenado por submissão. SENTENÇA: Cem chicotadas ou chicoteado até à morte." O medo tranca-me o cérebro, as fendas transbordam de sangue. O sentado diz, "Agora sabes porque não te podes ir embora. Tens de cumprir a sentença." O do chicote avança sobre mim e conta até cem. Por fim, desprende-me das fortes correias de cabedal, retira-me da parede e atira-me para o canto mais escuro da sala, onde outros homens definham lentamente numa montanha de dor. Enquanto aguardo que o meu corpo exangue por fim suspire, o sentado grita, "O próximo!" Na sala mal iluminada entra um outro homem, cadavérico também. O do chicote pousa a arma na secretária e avança para a parede onde se encontram o cabide e as correias de cabedal. O homem que entrou pendura-o pelo cachaço, prende-lhe os pulsos, encaminha-se para a secretária onde segura o chicote e, fazendo-o estalar no chão, posiciona-se à direita do juiz.
Desperto sempre antes do meu último suspiro.