Quarta-feira, 11 de Novembro de 2009

 

Capitulo I - 1ªparte

 

Sempre duvidei dos fenómenos transcendentais, sempre me declarei um céptico, mas o facto é que algo de muito estranho, muito macabro me sucedeu:

            Sou um bem sucedido executivo numa grande empresa multinacional e há cerca de um mês atrás parti em negócios para um país distante. Em casa deixei a minha mulher e os meus dois filhos. Era uma situação comum, portanto, sem envolver preocupações especiais além das habituais providências destas ocasiões. Os negócios correram-me maravilhosamente bem, o pior foi quando regressei, há uns dias atrás.

            Aterrei no meu país, e ao sair do aeroporto estranhei de imediato o facto de ninguém da empresa me ter enviado um carro com o respectivo motorista, como seria de esperar. Entanto, os esquecimentos são frequentes na raça humana. Atafulhei as minhas três malas na bagageira de um táxi e regressei a casa. Aí cheguei cerca da meia-noite. As saudades da minha familia eram imensas, não via a hora de os poder ter em braços e suspirar de comoção e alegria por os poder reencontrar. Tirei a chave de casa do fundo da minha pasta a tiracolo. Tentei abrir a porta mas a chave tão pouco cabia na fechadura. Virei-a e revirei-a, mas nada. Cocei o cocuruto. A fechadura havia mudado. Preparava-me para tocar a campainha mas o ruido das minhas tentativas despertara a minha família. A porta abriu-se. Da penumbra da noite sobressaiu a bela face da minha esposa tocada pela claridade de um candeeiro próximo. E quando eu esperava um abraço de esposa, um beijo de amante, apanhei com esta dolorosa pergunta na cara, “Posso ajudar?” Tomei por brincadeira, mas por poucos instantes pois esta arrastou-se e entendi então que a minha esposa estava louca. Só poderia estar louca, que outra explicação haveria? Garanti-lhe que aquela era a minha casa, ela a minha esposa, eu era o chefe daquela familia. Foi então que ela me chamou de louco, louco eu, imagine-se, disse-me ainda que a deixasse em paz e que se eu tardasse em sair dali chamaria a policia sem qualquer constrangimento. E ainda se atreveu a bater com a porta no meu nariz.

            Algo deveras muito estranho se passava. Aquela era a minha casa, aquela a minha mulher, eu era eu! Toquei a campainha, já nem o seu berrar era o mesmo, para exigir uma explicação, o que seria o mínimo que poderia exigir naquele momento, mas isso não me foi concedido. A minha mulher gritava-me de dentro de casa para que me fosse embora, caso contrário chamaria o marido, “Eu sou o teu marido! Acredita em mim!” Repliquei eu depois de encher os pulmões de ar para que as palavras me saissem mais convictas. Finalmente, sentei-me numa das minhas malas esquecidas à porta da casa, da minha casa. Esperei não sei o quê. Esperancei-me em que o dia trouxesse a resolução para esta macabra situação. Nos intervalos da minha espera largava sonoros bocejos, estava tomado pelo cansaço. Não sei se dormi, o facto é que não ouvi ninguém chegar perto de mim, e até saltei quando me tocaram o ombro. Virei-me, era um homem. Tinha, naquele instante, a cara afundada numa das sombras da noite. Perguntou-me o que fazia eu ali com todas aquelas malas à porta da casa dele. Eu pacientemente respondi-lhe que aquela era a minha casa, sempre fora a minha casa, vivia lá há anos com a minha familia. O estupor chamou-me de bêbedo, entre outras coisas mais aviltantes ainda. Eu, já tomado pela cólera, perguntei-lhe se era o amante da minha mulher. Ele abeirou-se de mim e segurou-me nos colarinhos. Foi então que pude vislumbrar o rosto do homem. Não queria acreditar no que os meus olhos viam, tamanha a inverosimilhança da situação. Algo de muito estranho se passava ali realmente, com toda a certeza. Olhando o homem olhava num espelho. Cada traço, cada ligeiro traço, até o franzir das sobrancelhas era idêntico, tudo nele era meu. Tudo! Tudo! Ele não pareceu notar a semelhança pois continuou ameaçando-me frebrilmente. Face às circunstâncias, menti, jurei a pés juntos que tudo não passaria de um equivoco, de um lamentável lapso da minha memória, que se encontrava cada vez mais debilitada mercê de uma doença neurológica degenerativa. Ele pareceu acreditar-me. Largou-me. Arrastei as malas para o jardim mais próximo para poder, enfim, recuperar a clarividência entretanto perdida e esperar que o novo dia disfizesse todo este imbróglio, ou que me fizesse despertar deste vil pesadelo. O homem entrou na minha casa destrancando facilmente a fechadura.

            Deitei-me no banco do jardim, cercado por meliantes e indigentes, até que a consciência tornou-se-me pesada e acabei por adormecer. Ao despertar na manhã seguinte, os acontecimentos da noite anterior repetiram-se cronologicamente na minha cabeça e tudo continuava-me a parecer inverosímel. Cheguei a aventar de que tudo não passaria de um odioso sonho, aliás, um funesto pesadelo. Mas não. Tudo fora real, demasiado real.

 



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 19:21
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