Quinta-feira, 03 de Dezembro de 2009

Capitulo II

 

Senhor Comissário da polícia:

            O motivo que me leva a escrever-lhe é muito simples e ao mesmo tempo muito estranho. Sou um mero executivo, homem de família, e desde há uns dias para cá temo que a minha vida esteja em risco. Tudo começou há aproximadamente uma semana, mais dia menos dia, altura em que conheci um homem que me tem aterrorizado. Uma noite, tive uma reunião que se prolongou imprevisivelmente, tendo terminado cerca da meia-noite. Como sempre, e vivendo eu a cerca de dez minutos do escritório, caminhei até casa, onde me deparei com uma estranha cena. Um homem, que eu jamais vira na minha vida, estava sentado numa enorme mala em frente da minha casa. Estava com um ar desgastado e bocejava como um velho. Toquei-lhe o ombro e indaguei-o sobre o motivo que o levava a estar ali em frente da minha casa com todas aquelas malas. Ele respondeu-me muito eloquentemente, embora não fazendo qualquer sentido. Imagine o senhor, disse-me que vivia ali há anos com a família e que a sua esposa não se estava sentindo bem e que por algum motivo não o reconhecia. Disse-lhe então que ou ele estava fazendo alguma confusão com a morada da casa, ou que estaria bêbado. Ele pareceu indignar-se com a minha observação e descaradamente perguntou-me se eu era o amante da mulher dele. Começou-me a parecer óbvio que este homem estava num qualquer estado de loucura latente, o que deveras me assustou. Naquele curto espaço de tempo decidi que o melhor seria assustá-lo antes que na sua loucura me ferisse de alguma maneira. Então agarrei-lhe pelos colarinhos e ameacei-o. Confesso que o fiz, não sabendo se isso constitui qualquer crime previsto no nosso código penal. Mas continuando, agarrei-o pelos colarinhos pretendendo assustá-lo mas o que vi no seu rosto não foi medo mas sim espanto. Mas não um espanto qualquer, como quando encontramos alguém conhecido num local improvável. Foi um tipo de espanto que eu jamais vira na minha vida, e quem acabou assustado fui eu. Ele, num mesmo tom espantado pediu-me que o desculpasse, que sofria de uma qualquer doença neurológica e então eu larguei-o e ele afastou-se mais as suas grandes malas. Por mais estranho que possa parecer quase acreditei nas suas primeiras palavras, de que ele realmente vivia ali, por maior que seja a inverosimilhança. O facto é que ele me pareceu realmente muito convicto das suas afirmações. E foi precisamente isso que mais me assustou nele. Contudo, entrei em casa sem esperar voltar a ver o sujeito. Mas quando na manhã seguinte me dirigi ao meu local de trabalho, cruzei-me com ele mesmo defronte do edificio. Fingi não o reconhecer e entrei. Demorei-me conversando com Óscar, como era habitual. Este contou-me que um individuo, que eu sabia ser o individuo da noite passada e que se havia cruzado comigo há pouco, tinha tentado entrar na edificio fazendo-se passar pela minha pessoa. Nós que nem possuimos qualquer semelhança física! Entretanto, enquanto Óscar me contava o que se passara, ouvi o individuo gritar lá fora. Pelo que me era possível entender, caluniava-me, afirmava que lhe havia roubado a identidade. Mas como seria eu, ou alguém, sequer capaz disso, senhor Comissário? Óscar mostrou uma enorme lealdade ao defender-me do caluniador, pois perseguiu-o e deitou-o ao chão com grande destreza e coragem. Apesar de ficar reconhecido a Óscar, não deixei de ficar assustado com a situação. Nos três dias que se seguiram, andei temeroso, olhando por cima do ombro, esperando que a qualquer momento o individuo me abordasse novamente. Tive, variadíssimas vezes, a sensação de estar a ser seguido, mas nunca o consegui confirmar. Penso que todo o caso me estava a desenvolver uma qualquer crise psicótica, talvez qualquer coisa semelhante à esquizofrenia, ou à vulgar mania da perseguição. Estava e está senhor Comissário. Estou muito aflito. Pela dedicação e apoio que tenho cedido ao nosso Regime, peço-lhe que me resolva este problema de um modo que o senhor achar mais correcto e mais eficaz. Advirto-o de que este homem poderá muito bem estar louco e temo seriamente pela minha vida. Agradeço-lhe imenso senhor Comissário. E viva o nosso Governo, que tão sábio se tem mostrado nas suas decisões.

 



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 02:08
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