Domingo, 27 de Dezembro de 2009

Ao longo de toda a minha vida vi-me, não raras vezes, em situações estranhas e em circunstâncias pouco ou nada verosímeis, mas nunca como a que me encontro neste preciso momento.  Não fosse esta situação uma autêntica tragédia para a minha pessoa, eu riria como um perdido, mas sendo esse o caso, entrego-me à vontade divina e rogo aos deuses para que terminem com o meu tormento.

            Não estou completamente certo do que vou dizer a seguir, entanto digo-o: Acho que alguém, por incúria ou intenção, me enterrou vivo. Tenho motivos para acreditar nisto e demonstrar-vos-ei porquê:

            Por qualquer razão, que eu desconheço por completo, caí num sono profundo, não sei por quanto tempo, até que despertei há algumas horas atrás. Deparei-me então com o breu absoluto. Incrédulo, toquei os olhos para me certificar de que ainda lá se encontravam, agarrei as pestanas para me certificar de que as abrira realmente. E deveras estavam e as abrira. Perdido um sentido tive, tenho, de me valer por todos os outros. Por cima do meu corpo encontrei um tecido muito fino e bordado, o que presumo ser a minha mortalha. Naquele momento, não o supus e apenas atirei com o tecido para o lado como se fora um lençol. Mas ao atirá-lo juntamente com o braço, este tocou em algo duro e senti o som da madeira nos nós dos dedos. Parece-me agora óbvio que este som proveio do meu caixão, embora, nesse momento, essa hipótese me tenha surgido muito vagamente, e, não me agradando, atirei-a para o poço fundo do meu pensamento. Tentei soerguer-me mas logo bati com a cabeça no tecto. A verdade revelava-se-me aterradora! Estendi os braços para o lado e confirmei o meu terrível destino! Era impossível esconder esta realidade dentro de mim por mais tempo. O odor da terra húmida entrava-me descaradamente narinas adentro. Estava enterrado vivo! Julgo que não gritei mas as vespas zumbiam exasperadamente dentro da minha cabeça e os meus ouvidos estavam dormentes. A angústia era enorme e a clarividência foi-se-me num ápice. A vontade, a necessidade, a terrível urgência de sair dali para fora invadiu todo o meu espírito e lutei estoicamente para o conseguir. Ah, como lutei!... Cerrei os punhos e bati com eles, com todas as minhas forças, contra as paredes do caixão. Bati nelas com os meus pés, com a minha cabeça. Não obtendo resultados, rasguei o pano que as envolvia e procurei freneticamente uma fissura, uma pequeníssima fissura que fosse, de onde pudesse abrir caminho à minha libertação. Mas em vão… Em vão… Sempre em vão… Após um par de horas nesta infrutífera batalha, entreguei-me ao meu destino. Cobri o meu rosto com as palmas das mãos e chorei desalmadamente. Era-me absolutamente impossível sair dali e só podia suplicar para que a morte não demorasse muito a chegar. Aliás, é precisamente isso que espero neste momento. Após chorar como uma menina pequena, decidi que, a partir desse momento, iria enfrentar a minha sorte com a valentia dos bravos, e como estava muito cansado de ver escuro fechei os olhos e dormi.

            Entrei por um corredor branco sem tecto nem paredes e caminhei, caminhei muito, sem medo, até que encontrei uma criança muito loira deitada sobre palhas, dormindo como se não fosse acordar nunca. Abanei-a insistentemente e quando ela acordou perguntei-lhe:

- És algum anjo?

-Ãh?

- És algum anjo?

- Sim, sou um anjo. – Respondeu-me ela enquanto esfregava os olhinhos.

- Conheces Deus? Podes interceder junto Dele para que me salve desta situação?

- Qual situação?

- Ora, sabes muito bem em que situação me encontro. – Dito isto abri os braços para que entendesse a minha angústia.

- Sei que estás angustiado mas não posso fazer isso que me pedes. Ele está dentro de ti. – E com isto deitou-se novamente nas palhas e tornou a adormecer. Como não gostei nada da conversa, virei-lhe as costas e fui-me embora. Mal dei um passo encarei um homem que me fitava perplexo. Tinha um ar mal-disposto e por isso perguntei-lhe:

- És algum demónio?

- O quê?

- És algum demónio? Mas está tudo surdo aqui?

- Sim, sou um demónio.

- Conheces quem me possa ajudar?

- Ninguém te pode ajudar.

- Estão todos doidos neste corredor! – E como não entendi nada e estava farto de não estar acordado decidi despertar.

            Assim que o fiz dei comigo a remexer nos bolsos das calças, hábito que sempre mantive ao longo da vida. Foi então que, estranhamente, encontrei o meu bloco de notas e a minha caneta, objectos que utilizo agora para vos escrever. Não sei quem teve a macabra ideia de o fazer. Se um familiar que conhecia o meu hábito de tirar notas por tudo e por nada, se um inimigo feroz com o propósito de me achincalhar. A verdade é que, assim que os encontrei, decidi que os utilizaria para relatar o meu horrível destino. E assim o faço. Não sei quem, sequer se alguém, encontrará estas folhas. Por certo estas linhas não estarão bem legíveis, mas quanto a isso terão de me perdoar pois a luz é nenhuma e é perfeitamente aceitável que as palavras acabem por se sobrepor umas às outras. Terão de me compreender e perdoar se o que escrevo se tornar cada vez mais desconexo e confuso, mas em verdade o ar torna-se cada vez mais rarefeito. Não sei quanto tempo mais terei. Demorei uma eternidade a escrever estas linhas. Estou quase morto, mas ainda não, falta muito pouco… Não tenho a certeza… Desculpem-me, ainda queria vos contar acerca do meu estado de espírito deste momento mas o meu estado de espírito neste momento não mo permite, sinto-me quase a desfalecer e quero-o mas o meu braço não mo permite, continua a escrevinhar estes disparates. Meu Deus, espero que nunca ninguém leia estas linhas, que vergonha… Este meu braço é realmente uma besta, não me deixa descansar, e poderão pensar que também eu sou uma besta, mas ele é independente de mim, acreditem-me, e não sei se sim ou se não, se para daqui a pouco se para sempre, mas parece-me que estou prestes a adormec

 



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 17:33
Terça-feira, 15 de Dezembro de 2009

Capitulo III

 

 

Relatório policial:

 

            Várias testemunhas assistiram ao homicidio ocorrido no Beco Estreito. A vítima já se encontrava morta no momento em que os paramédicos chegaram ao local. Causa da morte: Faca de cozinha cravada no peito. As testemunhas contam que o suspeito ao esfaquear a vítima gritou, “Eu sei quem sou eu!” Repetidamente. O suspeito foi visto a abandonar o local em passo apressado. Assim que fomos informados das circunstâncias do crime, o senhor juiz foi informado, as testemunhas foram ouvidas, e o réu condenado a ser executado à primeira vista. Foi chamada a respectiva força especial do exército, responsável por a execução de sentenças nestas circuntâncias. O réu foi localizado. O réu foi executado conforme determinação da sentença proferida pelo senhor juiz, e legislada pelo nosso grandioso Governo. Foi recebida uma carta confirmando-se ter sido escrita pela vítima, tendo sido recepcionada após o crime já ter ocorrido.

 

 

Fim

 



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 00:58
Quinta-feira, 03 de Dezembro de 2009

Capitulo II

 

Senhor Comissário da polícia:

            O motivo que me leva a escrever-lhe é muito simples e ao mesmo tempo muito estranho. Sou um mero executivo, homem de família, e desde há uns dias para cá temo que a minha vida esteja em risco. Tudo começou há aproximadamente uma semana, mais dia menos dia, altura em que conheci um homem que me tem aterrorizado. Uma noite, tive uma reunião que se prolongou imprevisivelmente, tendo terminado cerca da meia-noite. Como sempre, e vivendo eu a cerca de dez minutos do escritório, caminhei até casa, onde me deparei com uma estranha cena. Um homem, que eu jamais vira na minha vida, estava sentado numa enorme mala em frente da minha casa. Estava com um ar desgastado e bocejava como um velho. Toquei-lhe o ombro e indaguei-o sobre o motivo que o levava a estar ali em frente da minha casa com todas aquelas malas. Ele respondeu-me muito eloquentemente, embora não fazendo qualquer sentido. Imagine o senhor, disse-me que vivia ali há anos com a família e que a sua esposa não se estava sentindo bem e que por algum motivo não o reconhecia. Disse-lhe então que ou ele estava fazendo alguma confusão com a morada da casa, ou que estaria bêbado. Ele pareceu indignar-se com a minha observação e descaradamente perguntou-me se eu era o amante da mulher dele. Começou-me a parecer óbvio que este homem estava num qualquer estado de loucura latente, o que deveras me assustou. Naquele curto espaço de tempo decidi que o melhor seria assustá-lo antes que na sua loucura me ferisse de alguma maneira. Então agarrei-lhe pelos colarinhos e ameacei-o. Confesso que o fiz, não sabendo se isso constitui qualquer crime previsto no nosso código penal. Mas continuando, agarrei-o pelos colarinhos pretendendo assustá-lo mas o que vi no seu rosto não foi medo mas sim espanto. Mas não um espanto qualquer, como quando encontramos alguém conhecido num local improvável. Foi um tipo de espanto que eu jamais vira na minha vida, e quem acabou assustado fui eu. Ele, num mesmo tom espantado pediu-me que o desculpasse, que sofria de uma qualquer doença neurológica e então eu larguei-o e ele afastou-se mais as suas grandes malas. Por mais estranho que possa parecer quase acreditei nas suas primeiras palavras, de que ele realmente vivia ali, por maior que seja a inverosimilhança. O facto é que ele me pareceu realmente muito convicto das suas afirmações. E foi precisamente isso que mais me assustou nele. Contudo, entrei em casa sem esperar voltar a ver o sujeito. Mas quando na manhã seguinte me dirigi ao meu local de trabalho, cruzei-me com ele mesmo defronte do edificio. Fingi não o reconhecer e entrei. Demorei-me conversando com Óscar, como era habitual. Este contou-me que um individuo, que eu sabia ser o individuo da noite passada e que se havia cruzado comigo há pouco, tinha tentado entrar na edificio fazendo-se passar pela minha pessoa. Nós que nem possuimos qualquer semelhança física! Entretanto, enquanto Óscar me contava o que se passara, ouvi o individuo gritar lá fora. Pelo que me era possível entender, caluniava-me, afirmava que lhe havia roubado a identidade. Mas como seria eu, ou alguém, sequer capaz disso, senhor Comissário? Óscar mostrou uma enorme lealdade ao defender-me do caluniador, pois perseguiu-o e deitou-o ao chão com grande destreza e coragem. Apesar de ficar reconhecido a Óscar, não deixei de ficar assustado com a situação. Nos três dias que se seguiram, andei temeroso, olhando por cima do ombro, esperando que a qualquer momento o individuo me abordasse novamente. Tive, variadíssimas vezes, a sensação de estar a ser seguido, mas nunca o consegui confirmar. Penso que todo o caso me estava a desenvolver uma qualquer crise psicótica, talvez qualquer coisa semelhante à esquizofrenia, ou à vulgar mania da perseguição. Estava e está senhor Comissário. Estou muito aflito. Pela dedicação e apoio que tenho cedido ao nosso Regime, peço-lhe que me resolva este problema de um modo que o senhor achar mais correcto e mais eficaz. Advirto-o de que este homem poderá muito bem estar louco e temo seriamente pela minha vida. Agradeço-lhe imenso senhor Comissário. E viva o nosso Governo, que tão sábio se tem mostrado nas suas decisões.

 



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 02:08
Quarta-feira, 25 de Novembro de 2009

Capitulo I - 3ªparte

 

 

Enquanto caminhava de regresso ao hotel, fui tentando deslindar este improvável caso, mas nenhuma explicação me ocorria. Donde viera o usurpador? Como seria possível a nossa semelhança? Como tomara ele o meu lugar? Estaria eu certo quanto à minha própria identidade? Eu seria eu? Tudo isto começava-se-me a afigurar psicótico e cheguei a temer pela minha sanidade. E como forma de a manter, concluí que o melhor seria desistir de tudo e entregar a minha vida ao usurpador, e seguir, a partir desse momento, a minha nova e coersiva vida. Após tomar esta decisão senti-me derrotado, ultrajado, humilhado, e como consequência disto tudo senti-me infeliz, revoltado. Senti vontade de matar o vil usurpador, uma vontade febril de o esganar e poder tomar a minha vida de volta. Sim, era isso! Os meus sentimentos não me enganavam. Essa seria a única resolução possível, matá-lo! Só assim poderia retomar a minha vida, tudo voltaria ao normal. Faria-o desaparecer do mesmo modo sinistro e repentino com que aparecera. Animei-me com esta determinação e todos os sentimentos anteriores se transformaram em doce felicidade, tanto que entrei aos pulos no meu quarto de hotel.

            Só precisava agora de um plano para levar a cabo este assassínio. Decidi observar os seus movimentos durante três dias e constatei que todos os seus hábitos eram os meus. Desde o caminhar pelo parque e ler o jornal no banco do jardim ao final do dia, até ao deambular pelos bares até ao vómito durante a noite. Ao confirmar esse facto, decidi avançar e acabar com aquele reles ser. Roubei uma faca de talhante na cozinha do hotel durante a madrugada, e na manhã que se seguiu esperei o obtuso na porta da sua casa, da minha casa, e seguiu-o até à empresa. Como sempre, seguira a pé, como eu também o fazia, pois a empresa situava-se a apenas dez minutos dali. Enquanto se preparava para atravessar um beco sinistro e apertado, que utilizava sempre como atalho, apressei o passo e já dentro do beco alcancei-o. Gritei-lhe qualquer coisa idiota, pois era o meu primeiro assassínio e todas as células do meu corpo se animaram até à loucura, avancei de faca em punho e atingi-lhe o peito. A faca penetrou fundo até lhe sentir o corpo com o meu punho. Os seus olhos abriram-se de espanto e do interior da sua boca saltou-lhe um estrépito que ainda agora, neste momento, o ouço zumbindo na minha cabeça. O seu corpo caiu como um boneco inanimado e eu confirmei a sua morte sentindo-lhe a carótida. Abandonei o local apressadamente sentindo algo estranho que posso tentar situar entre o medo e a felicidade. O meu primeiro pensamento foi inteiramente para a minha família. O desespero que antes sentia foi-se desvanecendo à medida em que me aproximava da casa da minha mulher, da minha casa afinal. Aí chegado bati na porta com todas as minhas forças esperando que alguém me ouvisse. E isso aconteceu por fim. A porta abriu-se e o que eu por essa altura julgava ser improvável aconteceu: A minha mulher não me reconheceu. Pedi-lhe que olhasse bem para mim, uma, duas, as vezes que fossem necessárias, mas de nada adiantou. Ó miserável destino! Matara um homem em vão. Aquilo que pensei ser a minha salvação seria o meu degredo, a minha condenação ao inferno. Regressei de orelhas murchas ao meu quarto de hotel. Estava destinado a viver em solidão o resto da minha vida. De uma vida que afinal nem era minha, ou a ser nunca a havia reconhecido como minha antes. A única que eu reconhecia fora-me roubada e jamais me seria devolvida. Sentei-me na secretária e aqui estou eu agora, escrevendo esta missiva, esperando que alguém compreenda este meu desespero, entretanto regressado.

Oiço passos no corredor junto do meu quarto. Passos fortes e pesados, poderiam muito bem ser de um exército. Parece que batem à porta do meu quar



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 22:27
Quinta-feira, 19 de Novembro de 2009

Capitulo 1 2ªparte 

 

 

Mas se queria recuperar a minha vida teria de tomar decisões. Uma vez que estava impedido de entrar em minha própria casa, decidi alugar um quarto de hotel, no intuito de, pelo menos, ter um local onde dormir e um local onde as minhas malas pudessem estar em segurança, e após isto resolvi deslocar-me à empresa.

            A empresa situava-se na zona nova da cidade sendo que todo o seu edificio era um enorme espelho moderno. Chegado à recepção – local por onde já passara milhões de vezes antes, mas, sensação estranha, entrava no edificio pela primeira vez – fui travado por um dos seguranças, por sinal o que de todos havia mostrado, no passado, maior respeito e afinidade para comigo. Pediu-me a identificação, ao que eu, incrédulo, respondi perguntando porque era necessária essa formalidade comigo, que tantas vezes entrara naquele edificio, tantas vezes nos haviamos cruzado e trocado não só palavras de circunstância como igualmente assuntos de índole íntima. Sim, Óscar, era este o seu nome, havia sido em tempos meu confidente, a única pessoa em quem poderia confiar quase cegamente. Mas não agora. Já não poderia confiar em ninguém, fiquei certo disso naquele momento. E mais certo disso fiquei quando lhe perguntei se se recordava de mim, ao que ele me respondeu, “Nunca o vi antes em toda a minha vida.” Insisti, “Tem a certeza disso? O seu nome não é Óscar? Trabalho nesta empresa há mais de dez anos, conheço-o praticamente desde essa altura. Como é possível que não se recorde sequer da minha face?!”, “Olhe que eu possuo uma memória de elefante, já a minha mãe me dizia. Pobre senhora, faleceu já faz cinco anos, sabia? De qualquer modo, se o tivesse visto antes recordar-me-ia, com toda a certeza. Acontece inúmeras vezes pessoas virem aqui uma única vez apenas, repare: uma única vez!, trazer ou buscar algum documento, pois repare, eu vejo-as na rua e reconheço-as de imediato. Até me consigo recordar do dia em que cá estiveram e do assunto que as trouxe. Acontece inúmeras vezes. Portanto, esteja certo do que lhe digo, caro senhor. Se o tivesse visto antes recordar-me-ia. Contudo, não é o caso. Sim, o meu nome é Óscar. Mas qualquer pessoa que consiga ler o descobre visto ter o cartão de identificação bem à vista de todos, aqui pendurado no meu peito.” De nada adiantaria eu insistir. Algum bandalho roubara-me a identidade, o meu corpo, a minha face, e eu nada podia fazer. Havia tomado o meu lugar na minha familia, na minha casa, no meu emprego. Tudo! Eu agora nada tinha. Quem era eu agora afinal? Ninguém, temi eu. E temo ainda neste momento.

            A minha carteira desaparecera do bolso das calças. Presumi, e presumo ainda, que alguém ma tivesse surrupiado enquanto dormia no banco do jardim, entanto nada posso provar. Sem identificação não sou ninguém. Um corpo incógnito apenas, errando, pesaroso, pelas ínvias ruas da grande cidade. Preparava-me para, desgraçadamente, abandonar o edifício, quando se cruzou comigo, altivo, de pasta na mão, o bandalho, o ladrão, o usurpador de identidades. Na vez de sair, fiquei aguardando com curiosidade policial os seus movimentos. O bandalho demorou-se largamente com Óscar, discutindo trivialidades como eu tanto gostava de fazer. Era evidente que havia tomado o meu lugar na empresa e enfureci-me de indignação, enfureci-me tanto que as palavras saltavam por si só da minha boca, palavras ofensivas e indignadas, gritadas bem alto para que todos conhecessem a peça que ali se encontrava, um bandalho da pior espécie, um usurpador! Óscar veio em seu socorro. Colocou-me dolorosamente o braço atrás das costas e lançou-me porta fora com uma violência tal que aterrei de rojos na calçada poeirenta. Ergui-me mais a minha dignidade e sacudi o pó da roupa. Aquilo não iria ficar assim, prometi a mim mesmo. Decidi apresentar uma queixa na esquadra de polícia mais próxima. Lá chegado, contei tudo o que se havia passado desde que regressara do estrangeiro, e fi-lo com mais pormenor do que o faço aqui nesta missiva. E de que me valeu este meu esforço de detalhe? Nada, absolutamente nada. Os guardas riram-se descaradamente na minha cara. O meu relato divertiu-os tanto que os próprios detidos que lá se encontravam riram desavergonhadamente. Parece-me que cheguei a ouvir um dos guardas chamar outros que se encontravam de serviço na rua, para que também fossem ouvir o meu relato. Resolvi abandonar aquele manicómio e quando o fiz levei o meu orgulho preso por uma trela, mas a minha honra intacta. Já havia dobrado o quarteirão e ainda os ouvia rir. Estupores!



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 21:51
Quarta-feira, 11 de Novembro de 2009

 

Capitulo I - 1ªparte

 

Sempre duvidei dos fenómenos transcendentais, sempre me declarei um céptico, mas o facto é que algo de muito estranho, muito macabro me sucedeu:

            Sou um bem sucedido executivo numa grande empresa multinacional e há cerca de um mês atrás parti em negócios para um país distante. Em casa deixei a minha mulher e os meus dois filhos. Era uma situação comum, portanto, sem envolver preocupações especiais além das habituais providências destas ocasiões. Os negócios correram-me maravilhosamente bem, o pior foi quando regressei, há uns dias atrás.

            Aterrei no meu país, e ao sair do aeroporto estranhei de imediato o facto de ninguém da empresa me ter enviado um carro com o respectivo motorista, como seria de esperar. Entanto, os esquecimentos são frequentes na raça humana. Atafulhei as minhas três malas na bagageira de um táxi e regressei a casa. Aí cheguei cerca da meia-noite. As saudades da minha familia eram imensas, não via a hora de os poder ter em braços e suspirar de comoção e alegria por os poder reencontrar. Tirei a chave de casa do fundo da minha pasta a tiracolo. Tentei abrir a porta mas a chave tão pouco cabia na fechadura. Virei-a e revirei-a, mas nada. Cocei o cocuruto. A fechadura havia mudado. Preparava-me para tocar a campainha mas o ruido das minhas tentativas despertara a minha família. A porta abriu-se. Da penumbra da noite sobressaiu a bela face da minha esposa tocada pela claridade de um candeeiro próximo. E quando eu esperava um abraço de esposa, um beijo de amante, apanhei com esta dolorosa pergunta na cara, “Posso ajudar?” Tomei por brincadeira, mas por poucos instantes pois esta arrastou-se e entendi então que a minha esposa estava louca. Só poderia estar louca, que outra explicação haveria? Garanti-lhe que aquela era a minha casa, ela a minha esposa, eu era o chefe daquela familia. Foi então que ela me chamou de louco, louco eu, imagine-se, disse-me ainda que a deixasse em paz e que se eu tardasse em sair dali chamaria a policia sem qualquer constrangimento. E ainda se atreveu a bater com a porta no meu nariz.

            Algo deveras muito estranho se passava. Aquela era a minha casa, aquela a minha mulher, eu era eu! Toquei a campainha, já nem o seu berrar era o mesmo, para exigir uma explicação, o que seria o mínimo que poderia exigir naquele momento, mas isso não me foi concedido. A minha mulher gritava-me de dentro de casa para que me fosse embora, caso contrário chamaria o marido, “Eu sou o teu marido! Acredita em mim!” Repliquei eu depois de encher os pulmões de ar para que as palavras me saissem mais convictas. Finalmente, sentei-me numa das minhas malas esquecidas à porta da casa, da minha casa. Esperei não sei o quê. Esperancei-me em que o dia trouxesse a resolução para esta macabra situação. Nos intervalos da minha espera largava sonoros bocejos, estava tomado pelo cansaço. Não sei se dormi, o facto é que não ouvi ninguém chegar perto de mim, e até saltei quando me tocaram o ombro. Virei-me, era um homem. Tinha, naquele instante, a cara afundada numa das sombras da noite. Perguntou-me o que fazia eu ali com todas aquelas malas à porta da casa dele. Eu pacientemente respondi-lhe que aquela era a minha casa, sempre fora a minha casa, vivia lá há anos com a minha familia. O estupor chamou-me de bêbedo, entre outras coisas mais aviltantes ainda. Eu, já tomado pela cólera, perguntei-lhe se era o amante da minha mulher. Ele abeirou-se de mim e segurou-me nos colarinhos. Foi então que pude vislumbrar o rosto do homem. Não queria acreditar no que os meus olhos viam, tamanha a inverosimilhança da situação. Algo de muito estranho se passava ali realmente, com toda a certeza. Olhando o homem olhava num espelho. Cada traço, cada ligeiro traço, até o franzir das sobrancelhas era idêntico, tudo nele era meu. Tudo! Tudo! Ele não pareceu notar a semelhança pois continuou ameaçando-me frebrilmente. Face às circunstâncias, menti, jurei a pés juntos que tudo não passaria de um equivoco, de um lamentável lapso da minha memória, que se encontrava cada vez mais debilitada mercê de uma doença neurológica degenerativa. Ele pareceu acreditar-me. Largou-me. Arrastei as malas para o jardim mais próximo para poder, enfim, recuperar a clarividência entretanto perdida e esperar que o novo dia disfizesse todo este imbróglio, ou que me fizesse despertar deste vil pesadelo. O homem entrou na minha casa destrancando facilmente a fechadura.

            Deitei-me no banco do jardim, cercado por meliantes e indigentes, até que a consciência tornou-se-me pesada e acabei por adormecer. Ao despertar na manhã seguinte, os acontecimentos da noite anterior repetiram-se cronologicamente na minha cabeça e tudo continuava-me a parecer inverosímel. Cheguei a aventar de que tudo não passaria de um odioso sonho, aliás, um funesto pesadelo. Mas não. Tudo fora real, demasiado real.

 



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 19:21
Quarta-feira, 04 de Novembro de 2009

Um homem tinha aversão a filósofos. Ele próprio tentou atirar a sua filosofia fora embalde pois ela regressava sempre. Após que tempos neste vai e volta, o homem compreendeu que era impossível viver sem ela e em sua vez atirou fora a vida.



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 20:49
Quinta-feira, 29 de Outubro de 2009

Para o meu pai

 

E enquanto olhava distraidamente pela janela a chuva cair sem medo de tocar o chão, o administrador da empresa arrancou mais uma lasca de carne da sua coxa direita. Com a sua mão direita descansou a navalha ensanguentada na secretária, com a esquerda elevou a sua carne no ar por cima da boca bem aberta, toda a cabeça pendida para trás, e fê-la deslizar avidamente garganta abaixo. Este acto repetia-se frequentemente, inclusive ali no escritório da empresa, e se alguém achava o seu acto reprovável com observações deste género, "O senhor administrador é doentio.", ele respondia, "É isto que me mantém lúcido." Mas, apesar de todos na empresa conhecerem o seu hábito, isso nunca aconteceu. As únicas reprovações que ouvia provinham das senhoras que limpavam o edifício da empresa. Mas não eram as razões morais que as levavam a chamar a atenção do administrador, antes as consequências gravosas que esta situação trazia aos seus trabalhos. Ninguém pode duvidar de que seria realmente uma maçada limpar constantemente manchas de sangue do chão.  É que o sangue é algo que se entranha com muita facilidade e depois agarra-se com os seus dedinhos celulares e não quer sair. Não é como nos corpos aonde ele corre livremente por onde lhe apetece. Outra contrariedade residia no facto de os seus subalternos não lhe reconhecerem qualquer tipo de autoridade quando o viam coxear - isto quando era carne da sua coxa que ele devorava, como é óbvio. Certa vez, um dos seus empregados não lhe segurou o elevador, e ao chegar ao topo das fatigantes escadas o administrador confrontou-o: O primeiro afirmou, com o dedo indicador todo esticado no alto, que um coxo nunca é digno de respeito pois é demasiado embaraçoso para quem o conheça. Antes fosse pederasta, corrupto ou caluniador! O administrador tentou replicar, mas antes que tivesse tempo para isso já o empregado lhe segurara nos colarinhos e o pregara no chão. Mas nada o impedia de se alimentar de si mesmo. Quando o fazia, sentia-se renovado, mergulhado em águas santas, todas as debilidades e receios desapareciam do seu espírito, todas as convulsões dentro de si se acalmavam e corria, todo ele, em águas plácidas e abundantes. Contudo, nunca por muito tempo e antes que pudesse desfrutar totalmente, já o fogo infernal se acendia em si e o torturava e fustigava incessantemente sem compaixão alguma. E assim, soltava mais um pedaço de si e o devorava . Sempre na mesma cadência voraz. Sempre com a mesma inconsequência febril. Sempre.

 Numa manhã em que o sol fugira para sempre, o administrador caminhava pela borda do passeio, apenas pelo prazer de caminhar pela borda do passeio, e parou, apenas pelo prazer de parar. Um pombo branco de olhos rubros aterrou de chofre à sua frente. O administrador viu-se na obrigação de lhe dizer algo mas face à desproporção dos corpos as palavras do administrador não couberam nos ouvidos do pombo. Sussurrou-lhe então se era dele que vinha à procura, mas sussurrou tanto que se esqueceu que havia falado. E o pombo, que sim, que era ele quem procurava. E o administrador volveu aflitíssimo, como é normal numa situação destas, o porquê de o procurar a ele, a ele em especial. E o pombo, silenciosamente, respondeu-lhe algo como que falando-lhe directamente ao coração. Logo os olhos do administrador se alagaram em água, os joelhos calcaram o chão, e nos seus longos braços tomou o pombo e o apertou contra o peito. Mas depressa se pôs de pé decidido. Acreditando surdamente no que o pombo lhe não disse, o administrador fincou fundo a mão no seu próprio peito e dele retirou o coração, que pulsava como um louco, e o ergueu orgulhosamente no ar. Tomou-o vorazmente para si pelo lado da boca e saboreou-o sofregamente ainda antes de perecer.

 



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 22:21
Sábado, 24 de Outubro de 2009

O marido disse à esposa, "Vou só ali e já volto." Ela perguntou, "Voltas mesmo? Prometes?", "Prometo.", respondeu o marido. Por cada ano que passava sem o marido regressar, a mulher rejeitava dois ou três pretendentes. "Já tenho homem." Dizia ela de olhos suspensos no vazio, e depois sentava-se e esperava. A mulher foi envelhecendo e não havia meio de o marido regressar, até que um dia, já muito velha, a mulher faleceu e o seu corpo foi enterrado junto da sepultura do marido que já lá se encontrava fazia agora uma eternidade.



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 20:26
Domingo, 18 de Outubro de 2009

Um viajante perdera-se na árida paisagem das dunas desérticas. Os ávidos abutres sobrevoavam, em círculos, a sua cabeça. Caminhava há muito, e caminhou tanto que já não era ele quem caminhava mas antes o chão que se movia sob os seus pés descalços. Toda a sua roupa ficara para trás. Não comia nem bebia fazia dias, e havia meses que não vislumbrava vivalma. Estava tão cansado que decidiu deitar-se. Dormitou alguns minutos apenas, até que por fim acordou. Com a cabeça caída para o lado, avistou dois homens, ao longe, montados cada um no seu camelo. Tentou juntar todas as forças que lhe restavam para se soerguer, mas debalde o fez pois o máximo que conseguiu foi levantar um braço a meia altura. Os abutres continuavam a observá-lo na paciência dos seus círculos. Os dois homens chegaram, finalmente, perto do viajante. Este tentou pedir ajuda mas já nem o braço conseguiu mover. Um dos homens apeou-se, ajoelhou-se diante do viajante e tomou-o pelo pulso. Este suplicou ao homem, "Dai-me água, por favor, dai-me água." O homem, dirigindo a cabeça para o outro, disse, "Está morto." O viajante replicou, "Não, não estou. Não me ouvis? Acabei de vos pedir água." O apeado, ainda debruçado sobre o viajante e com a cabeça dirigida para o outro, continuou, "Está morto, e parece que o está há vários dias. Não tarda os abutres virão devorá-lo. Só não entendo porque ainda não vieram." O outro respondeu, "Deixemo-lo com eles. Prossigamos a nossa viagem." O apeado concordou. Enquanto escalava o camelo, disse ainda, "O cheiro é intolerável. É já o terceiro viajante morto que encontramos hoje. Se encontramos mais algum vomito até as entranhas." O outro riu-se. O viajante, temendo pelo seu destino, ainda gritou com todas as forças que lhe restavam, "Ireis deixar-me aqui? Não tendes compaixão alguma dentro de vós? Ajudai-me, por favor! Os abutres estão cada vez mais próximos, os seus círculos são espirais cada vez mais descendentes! Ajudai-me, por favor!" Mas iam já os homens sobre os camelos cada vez mais perto do horizonte, e já os abutres lhe depenicavam a pele e a carne. O viajante ainda gritava, "Dai-me água, por favor! Os abutres estão cada vez mais próximos. Peço-vos, ajudai-me!" E assim continuou até o último pedaço de carne se desprender do seu corpo inerte.



publicado por Mário Ramos d´Almeida às 17:56
Da infância, da vida e da morte.
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